As solteirinhas
Numa antiga estrada de tropas, onde o povo se reunia para fazer novenas, invocar santos e rezar pelas almas, havia um cruzeiro. Mais tarde esse lugar deu origem a uma cidade chamada Cruz das Almas. Uma pequena cidade do recôncavo baiano de pessoas acolhedoras e humildes, donas de um saber passado de geração em geração. O verde da vegetação e o cheiro que ela exala, faz com que as pessoas acalmem o espírito. Coberta de tradições e rica cultura, torna-se inesquecível para quem a visita, principalmente nas festas juninas. Perto dali, num povoado chamado Itapicuru, morávamos eu e minha irmã, órfãs, que, há trinta anos, com pouquíssimas visitas à cidade, crescemos e habituamo-nos naquele ambiente pacato e tranquilo, cheio de cumplicidade entre os moradores. Nossas vidas eram comuns a muitos outros moradores daquela região da zona rural.
Tão próximas estávamos da Ilha de Itaparica, tão perto da capital da Bahia, Salvador, mas nossas mentes nem imaginavam o que nelas havia, nem a beleza explícita que esses lugares revelavam. Fatos importantes aconteciam na cidade próxima, mas não nos movíamos do lugar.
Certo dia, fora instalado o Centro Cultural Galeno D’Avelírio na antiga cadeia pública, construída em 1922. O prefeito da época providenciou transporte para as pessoas da zona rural, mas não fazia parte dos nossos planos deslocar-nos para apreciar o evento, coisa que nem entendíamos direito o significado. Para nós, não fazia diferença estar em 1984 ou dias atuais, tudo girava em torno de nossa vidinha, nosso lugarejo, nosso sustento. Pouca coisa mudaria.
Era rotina. Antes mesmo de o sol raiar, arrastando as chinelas, eu já estava pondo água no bule para preparar o desjejum matinal. Não conversava. O humor, ao despertar, não era nada bom.
Minha irmã chamava-se Marina; calada, limitava-se a responder monossilabicamente, seca e observadora. Eu, simplesmente Lia; criativa, distraída e sonhadora. Não éramos feias, porém não tínhamos atrativos que chamassem a atenção do sexo oposto. Vivíamos numa casa singela e acolhedora perto da cidade. A sua cor era apagada pelo tempo à espera de melhores vendas na pequena mercearia da vila, de onde tirávamos o sustento. A casa fora a única herança deixada pelos nossos pais antes de partirem desta para a melhor.
Andávamos sempre juntas, mas não tínhamos apego familiar. Uníamos o útil ao agradável. Tínhamos uma à outra para negociarmos e tocarmos a vida, não nos preocupávamos com o futuro, com casório, com bem-querer. A natureza já havia recolhido uma a uma as nossas belezas, de tal maneira que só restava o pensamento de trabalho para manter-nos vivas naquele lugar, onde qualquer novidade ou tecnologia era motivo de medo e desconfiança.
Muitas vezes, quando havia festa de largo na cidade, as moças escolhiam seu vestido mais novo, mais atraente para provocar os moços. Era o momento mais esperado. Não se tratava só de uma festa de largo. Era a chance de mudar sua vida para sempre com um bem-querer, não passava pela cabeça a ideia de um mal-me-quer na vida delas. O momento em que iriam usar o seu melhor perfume, distribuir sorriso e simpatia a fim de encontrar um par de calças para tornar as suas vidas mais alegres, com sentido.
Era o pensamento das moças, mas não o nosso. Nós, as solteirinhas, vivíamos para nós mesmas. Nada nos interessava principalmente essas coisas que eram de tanto interesse para outras.
A vida para nós era o trabalho, era tudo o que fazíamos, era tudo o que sabíamos fazer.
O tempo passava sem muita novidade... Ora tempo de chuva ora estiagem... Para nós, tudo era normal, rotineiro.
Mas, num certo dia, comum como os outros, de uma hora para a outra, surgiu um homem a cavalo na estrada. A primeira a avistar fora Marina. Sem ânimo de receber o forasteiro que vinha em direção à nossa residência, adentrou e bateu a porta. Eu, que estava quase preparada para deitar-me, estranhei a rapidez com que ela fechara a porta e fora averiguar. O homem, como que, sem rumo, parado, permaneceu em frente à nossa casa.
- Boa noite!! Posso saber onde tem uma pensão por aqui??? - quis saber o estranho.
Meio desconfiada, respondi:
- Por aqui não há pensão alguma, não senhor.
O homem balançou a cabeça, preocupado, falou algo baixinho e agradeceu. Virou-se para ir embora quando eu disse:
- Se quiser dormir na área dos fundos da casa, não me importo. Não posso acomodá-lo aqui porque moro com minha irmã e não fica bem acomodar o moço em nossa casa.
Com um sorriso de alívio, o homem agradeceu a gentileza e aceitou acomodar-se no fundo da casa com a condição de levantar-se bem cedo para que ninguém o visse.
A noite era escura, o silêncio enorme. Podia-se ouvir a respiração forte do homem que dormia nos fundos da casa.
Há quanto tempo não tinha contato com um homem... E este veio parar bem aqui. Quem seria ele? Possuía esposa, filhos? O que ele estava fazendo por essas bandas? Havia tempo que meu coração não acelerava mais por ninguém, mas a cada minuto que passava este pobre e pequeno músculo palpitava. E cada vez com mais intensidade. Senti de súbito um calor que invadia meu corpo e aos poucos desejei estar com aquele estranho. Senti curiosidade de ver seu rosto claramente, seu corpo. Logo arrependi dos pensamentos e tentei dormir, mas foi em vão. O que estava acontecendo? Levantei-me, calcei as macias chinelas e dirigi-me à pequena cozinha. Bebi um pouco de água fria do pote. Sentei-me à mesa e fiquei a olhar o canto da cozinha com os ouvidos apurados a fim de escutar qualquer ruído que dele viesse. Senti meu corpo amolecer e debrucei-me sobre a mesa. Aquele homem! Quem seria? O desejo que eu sentia era forte. Com coragem misturada à fantasia, abri a porta dos fundos, olhei o homem silenciosamente, agachei-me para melhor observá-lo... Como era bem apanhado!!! Cabelos curtos, a barba por fazer, o peito nu, sem pêlos... Um perfume masculino que me fez fechar os olhos para melhor apreciar o aroma... Com as mãos suadas e trêmulas, levantei o pequeno cobertor, deitei-me ao lado dele. Cuidadosamente, passei os braços sobre seu corpo e adormeci com a cabeça encostada às largas costas do forasteiro. O sol já ia alto. Acordei com o último cantar do galo. Qual não fora o susto ao perceber que adormecera ali mesmo, sobre a mesa. Num sobressalto, corri para o quarto a fim de que a minha irmã não me visse e percebesse que eu não fora para a cama. O que ela iria pensar? Rezei para que Marina não tivesse levantado naquela noite. Deitei um pouco em minha cama e fiquei pensando se tudo o que havia sonhado fosse verdade. Se eu pudesse deixar os desejos mais profundos fluir livremente como uma ave que voa pela imensidão do céu... Levantei-me para preparar o café da manhã na esperança de oferecer ao visitante, mas este já havia partido. Ao chegar ao lugar exato onde o homem deitara na noite anterior, encontrei um pequeno objeto esquecido no batente. Era uma lâmina de barbear. Cuidadosamente, guardei o pequeno instrumento numa caixinha da penteadeira e junto com ele, um pequeno sinal de que algo na minha vida iria mudar. Sentimentos voltaram à tona e aquilo era um indício da existência daquele estranho homem, que, da mesma maneira que surgira, desaparecera.
Samai de Azevêdo
Entrega da agenda anual da Rede Municipal de Ensino contendo trechos dos textos selecionados no concurso.
Categoria: Memórias
3º Lugar: "As Solterinhas"
2007
t